Crônica de uma morte anunciada.

A rotina do dia consistia em buscar alimento, água e pão. Sempre alguém da família ficava na fila da padaria, os vizinhos todos revezavam para manter um lugar que lentamente avançava. Todos ali sabiam que padarias eram alvo, mas a essa altura, tudo é.

Penso sempre que vivemos uma espécie de roleta russa, quando revezamos o lugar da fila é como se mais uma volta no cilindro das balas da arma tivesse sido feita. Mas a casa, nossa casa, também estava em risco e ameaçada, até aqui bombardeiam prédios mais habitados, mas bombas estão por todos os lados e tudo pode acontecer.

Os vizinhos trocam filhos entre si, pensam que alguém da família precisa sobreviver. Meu pai não disse se concorda, mas não nos deixou com ninguém; parece que não concorda ou não consegue decidir.

A escola destruída, professores e colegas desaparecidos e muito mais gente soterrada. Não contam os milhares contabilizados entre mortos oficiais. Ninguém sabe mais de nada, nem quem conta e divulga números, faz por estimativa, por obrigação, para dimensionar a tragédia que o mundo vê e nada consegue fazer.

Quase não sabemos mais notícias, mas estamos acostumados com isso, elas sempre chegam atrasadas e poucas, e passam pelos filtros. Internet a gente tem, ou tinha.

Amanhã é minha vez na fila do pão, água meu tio conseguiu pra semana, minha mãe consegue fazer um refeição ao dia para a família.

Vivemos todos no lado sul, mais distantes da limpeza geral do norte, mas sabemos que a decisão de tomar tudo está feita, não existe saída para nós .

Ninguém quer abandonar a terra, se sair não volta mais. Viver sem a terra já é morrer, então para as pessoas daqui, tanto faz, e estamos todos acostumados a chorar pela morte, tantas vezes, e nossas lágrimas ainda não secaram e insistimos, mesmo com tanto entulho e sangue nos olhos.

Manhã chegou, minha vez de render meu irmão na fila, quase não andou e minha mãe pede a deus a minha proteção.

São os mesmos que encontro, alguns outros que desceram do norte, o tempo seco, o barulho de bombas, o caminho de mau cheiro e escombros. E gritos, porque o bombardeio começou mais cedo e parece vir na nossa direção, não temos para onde correr e aceito meu destino. Fico pra sempre na terra da herança , que já era minha escolha, para a eternidade.


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