
Na década de 60 do século passado, em toda a América Latina, a ameaça era o comunismo e a cura eram as ditaduras militares. O Brasil ficou nessa por 21 anos.
Cada um dos países atingidos pela praga militar foi se virando como pôde para dela se livrar, alguns mais e outros menos. Mas a praga, para ser uma praga, ameaça sempre voltar. O Brasil foi exemplo recente e a Argentina está em processo de maturação, apesar do aparente domínio civil do aloprado Milei, os militares vem chegando pelas mãos da vice Villaruel.
A Colômbia e a Venezuela, para ficarmos só nesses dois exemplos, passaram por processos de superação da presença militar de forma distinta da nossa. Com as guerrilhas revolucionárias na Colômbia e milícias de traficantes, a passagem para uma democracia só ocorreu mais recentemente, mas longe de estável. O processo venezuelano passa por Hugo Chávez, um militar que, de dentro, transformou as forças armadas venezuelanas em seu contrário, mas sem nunca perder seu caráter autoritário.
Não vou contar a história da Venezuela, o maior poço de petróleo do mundo e por isso tão cobiçada. Desde Chávez e agora com Maduro, a sobrevivência do país e do seu povo sempre esteve ameaçada por golpes de todos os lados, todos querendo a riqueza do ouro negro para si, como tinha sido sempre.
Chávez estatizou o petróleo e assim segue até hoje, convivendo com bloqueios, boicotes e ameaças, sobretudo dos EUA. A Venezuela vem tentando melhorar a vida de seu povo com enorme dificuldade e tem conseguido progressos notáveis recentemente.
A atual eleição me parece isso, não uma eleição no nosso modo de ver, mas um teste coletivo de que tipo de apoio a política chavista ainda consegue manter no país. Não é uma eleição para ganhar, no sentido que nós entendemos, um voto a mais e pronto, resolvido. É um teste para ver se podem nos vencer e em que condições.
É difícil explicar um processo histórico de poder, que não veio de acordos do alto nem de concessões aos ricos. Um tipo de mudança completa de orientação aconteceu na Venezuela, que custou muito ao povo promover e não vai ser jogado fora por uma disputa eleitoral empatada ou incapaz de afastar os atuais mandatários.
Tá bom, então defendo uma ditadura?
Vamos tentar seguir.
Vamos lembrar da eleição de 2020 no Brasil contra o bolsonarismo. As blitz no nordeste impedindo eleitores de chegarem no local de votação, R$ 300 bilhões em auxílios caminhoneiros, Uber, isenção de impostos de combustíveis, Bolsa Família com data para acabar em dezembro após a eleição. Espionagem, porta de quartéis, ameaças, bombas, invasão e depredação. Sim, todos nós lembramos e agora lentamente vamos apurando os responsáveis. A questão é: e se eles ganhassem? Seria uma vitória democrática?
Nos EUA, Trump tentou a mesmíssima coisa, com os mesmos argumentos e as mesmas táticas copiadas aqui. Felizmente com o mesmo resultado e derrotados. E agora tenta voltar e explica que, se ganhar, ninguém mais vai precisar se preocupar em votar daqui a 4 anos. Sim, ele diz isso nos comícios.
E vai disputar eleição assim mesmo?
Então democracia e eleição também servem para impedir a democracia no futuro?
Trump promove um plebiscito e pergunta quem quer acabar com a democracia nos EUA? É isso?
Porque pode ter sido o que aconteceu na Venezuela. Desafiados pela oposição, pela Argentina, pelos EUA, por um monte de gente, eles colocaram à prova a força de cada um e dizem que venceram.
( “Se eu tivesse sido eleito teríamos tomado o país (Venezuela) e pegaríamos todo aquele petróleo. Teria sido ótimo”. Donald Trump, 2023.)
O Brasil quer ver as atas, que eles prometem mostrar.
Mas o Brasil vai pedir as atas dos EUA? Do futuro presidente dos EUA o Brasil só reconhece depois de ver as atas? E assim vai fazer daqui pra frente com todas as eleições mundo afora?
Ou só ignora o processo soberano interno dos venezuelanos, seja ele perfeito ou com falhas?
Rússia e China reconheceram a vitória de Maduro, a posição do Brasil me parece enfraquecer os BRICS. Ou vamos pedir as atas do Putin? Do Xi?
Espero ter sido compreendido.
Quem quer tomar o poder na Venezuela, na China, na Rússia, em Cuba, na Turquia, na Arábia Saudita, na Coreia do Norte, etc, etc, etc, tem que fazer mais e melhor do que estão no poder, exatamente como esses que eu citei em algum momento precisaram fazer para chegarem onde chegaram.
Isso nos serve?
Penso que não, ao menos até aqui não. Mas estivemos quase lá recentemente, e se Bolsonaro vencesse onde estaríamos hoje e para onde estaríamos caminhando? Para uma democracia? E a tutela militar atualmente em baixa, quem garante que ela não tenta alguma coisa daqui a alguns anos?
Ou seja, por isso as relações internacionais devem se guiar pela autodeterminação dos povos, cada um segundo as suas lutas e história. E que ninguém se meta. Ou Israel não faz o que quer? Ou Rússia e Ucrânia não estão lá disputando quem leva o quê? Alguém se mete? Alguém tem força para isso?
Talvez tenhamos que admitir que os venezuelanos decidiram fechar o seu regime a entrega-lo a vendilhões e traidores. Essa crise da transparência na eleição vai definir.